artigo paranoia foraclusão blogNão vou me ater às possíveis definições do conceito de Foraclusão ou Forclusão, como desejem chamar, nesse momento tratarei de um ponto tão delicado quanto, que por diversas vezes me pego a pensar nesse tópico não apenas em minha atividade clínica, mas também quando estou na Universidade, na árdua tarefa de ministrar aulas ao primeiro semestre de um curso de Direito, onde consta no conteúdo programático da disciplina a necessidade de ser apresentado aos alunos o diagnóstico diferencial e as estruturas clínicas.

Recorro a Quinet (2005) para apresentar-lhes Neurose, Psicose e Perversão, especificamente no que tange a função diagnóstica. Para aqueles que têm curiosidade por essa passagem teórica, didaticamente elaborada, indico recorrer a esse autor em seu livro As 4 +1 Condições da análise, capítulo 1, tópico 2 – A função diagnóstica.

Nesse tópico, nos clarifica que a questão do diagnóstico diferencial só se coloca em psicanálise como função da direção da análise: diagnóstico e análise (no sentido de processo analítico) se encontram numa relação lógica, chamada de implicação – o diagnóstico só tem sentido se servir de orientação para a condução da análise. Para tanto, o diagnóstico só pode ser buscado no registro do simbólico, onde são articuladas as questões fundamentais do sujeito (sobre o sexo, a morte, a procriação, a paternidade) quando a travessia do complexo de Édipo: a inscrição do Nome – do – Pai no Outro da linguagem tem por efeito a produção da significação fálica, permitindo ao sujeito inscrever-se na partilha dos sexos.

É a partir do simbólico, portanto, que se pode fazer o diagnóstico diferencial estrutural por meio dos três modos de negação do Édipo – negação da castração do Outro – correspondente às três estruturas clínicas.

Segundo Quinet (2005) um tipo de negação nega o elemento, mas o conserva, manifestando-se de dois modos: no recalque (Verdangung) do neurótico, nega conservando o elemento inconsciente e o desmentido (Verleugnung) do perverso, nega-o conservando-se no fetiche. A foraclusão (Verwerfung) do psicótico é uma negação que não deixa traço ou vestígio algum: ela não conserva, arrasa.

Os dois modos de negação que conservam implicam a admissão do Édipo no simbólico, o que não acontece na foraclusão.

Ainda Quinet (2005), didaticamente, esclarece que cada modo de negação é concomitante a um tipo de retorno do que é negado. No recalque, o que é negado no simbólico retorna no próprio simbólico sob a forma de sintoma. O autor exemplifica, apresentando as seguintes considerações:

Na neurose, o complexo de Édipo, diz-nos Freud, é vítima de um naufrágio, que equivale à amnésia histérica. O neurótico não se recorda do aconteceu na infância – amnésia infantil, mas a estrutura edipiana se presentifica no sintoma. Um exemplo é a idéia obsessiva do Homem dos Ratos, formulada na frase: ‘se eu vejo uma mulher nua, meu pai deve morrer’. (QUINET, 2005, p. 20)

O recalque da representação do desejo da morte do pai retorna no simbólico sob a forma do sintoma: a ideia obsessiva, expressa nessa frase, denota sua estrutura edípica, ou seja, a proibição, conectada ao pai, de ver uma mulher nua. O sintoma fornece, assim, um acesso à organização simbólica que representa o sujeito.

Não é falso afirmar que o sintoma é a via de proteção do neurótico. O neurótico se protege em seu sintoma, daí a sua dificuldade em abrir mão dele. Seja na neurose obsessiva ou na histeria…o sujeito se protege em suas construções sintomáticas !!! Afirma Forbes (1999) que talvez seja por isso que certas pessoas não suportem um percurso de análise, uma vez que há o Gozo no sintoma¹.

Lacan dizia que uma análise termina quando se pode contar a tragédia da própria vida comicamente, quando você já não se leva tão a sério, quando o que existe é a possibilidade de se fazer responsável pela opção do ser. A Psicanálise Lacaniana substitui a culpa pela responsabilidade. Ela responsabiliza o sujeito por seu desejo. (FORBES, 1999).

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Voltando a Quinet (2005), o mesmo aponta que no desmentido, o que é negado é concomitantemente afirmado, retornando no simbólico sob a forma de fetiche do perverso. Já na Psicose, o que é negado no simbólico retorna no real sob a forma de automatismo mental, cuja expressão mais evidente é a alucinação. Como o retorno é no real, ou seja, fora do simbólico, emprega-se o neologismo foraclusão como versão do termo francês forclusion, utilizado no âmbito jurídico para se referir a um processo prescrito, aquele de que não se pode mais falar porque legalmente não mais existe. O termo foraclusão como forma de negação indica por si mesmo esse local de retorno, a inclusão fora do simbólico.

Confesso não me sentir nem um pouco confortável quando estou didaticamente expondo essas estruturas clínicas, e demonstrando o quadro de Quinet (2005) em sala de aula. É pertinente pontuar, o quanto a forma como o autor exemplifica na página 19 do seu livro ajuda-me bastante, porém, por diversas vezes, fez-se necessário dizer em sala, mesmo que em forma sutil e mais leve, objetivando aliviar desconfortos e tensões para dar prosseguimento à aula: Meninos parem de tentar descobrir em que estrutura clínica vocês estão, até porque ‘purinho, purinho’ ninguém é!

Penso ser uma tarefa árdua, tanto para a professora que ministra aulas para não analistas (e sim juristas, futuros bacharéis em Direito), como também deve ser difícil para aqueles meninos de 1º semestre escutar de uma professora (que não é da área jurídica e nunca pretendeu ser) que o conceito de normalidade que eles tanto desejam é quase, senão impossível de existir.

Recorro a Caetano Veloso, e digo: De perto ninguém e normal…. e agora pergunto aos leitores: alguém aqui é normal???? Alguém aqui deseja ser normal???? O que é normal para vocês????

No curso de Psicologia¹¹, na disciplina Terápicas II, 8º semestre, em discussões em sala, um dia uma estudante brilhantemente me dizia: Clara, às vezes eu estou lendo histeria, no livro de Phillipe Julian e às vezes penso que a descrição é de uma mulher transtorno afetivo bipolar. E outro estudante complementava: Não seja por isso, minha equipe ficou encarregada de estudar Neurose Obsessiva, e no livro de Melman (2004) A neurose obsessiva, o autor nos disse em uma de suas conferências que por diversas vezes já viu paciente neurótico obsessivo, internado em hospital psiquiátrico e sendo ‘tratado’como psicótico.

Se Lacan deixou como legado clínico que é com nossos analisantes que aprendemos o que é a psicanálise, também acredito que são com meus estudantes que aprendo o que é ser professora e tenho a possibilidade de oxigenar o trabalho solitário que é o de ser analista. Nesse aspecto, concordo com Harari (2002) quando ele nos disse:

podemos perguntar, então: seria a nossa função, como analýstas, a de desatar o nó e/ ou a cadeia? É assim, pois: trata-se de desatar, e de permitir um novo reenlace. Como formulamos: não há dês-enlace sem re-enlace, em todas as acepções da locução. Não haveria final, se algo não se reenlaça; porém, para isso, é preciso dês-enlaçar. E é isso que significa analisar.

Vocábulo marcante já desde Freud, “analisar” não consiste, em suma, em reforçar nada, mas em desatar. E, nesse desatamento, nesse momento do instante, brota o afeto que Milner – em uma pontuação clínica muito sagaz – demonstra como o próprio encontro com o Real: o horror. (p.288)

Essa noção caracteriza a práxis do analista, asseverando que este tem horror de seu ato. Se há alguém resistente à analise – contra – senso desprezível que muitos prefeririam ocultar – esse alguém é o analista. Apesar do que afirme, e de que o identifique como um sinthomem, o analista tem, em muitas ocasiões, e todos os dias, horror do ato analítico. Isto é: horror ante o que está por dizer, ou horror pelo já dito. Horror esse propiciando pelo encontro com o Real.

Ser analista talvez seja sustentar o lugar do insustentável. Emergir todos os traços obsessivos, histéricos, psicóticos, perversos, e ampliar sua escuta para a escuta analítica… de um desejo de um Outro… que não é o da minha pessoa, mas sim, com o desejo do analista. O que sustenta a clínica de um analista é o desejo do analista.

Resgatando essas estruturas tão tênues, tão limítrofes, sabemos, concordando com Zolty (2001) que o conceito de foraclusão proposto por Lacan foi uma das contribuições mais notáveis da psicanálise à compreensão do fenômeno psicótico. Entretanto, o campo da psicose e de sua relação com a neurose e a perversão ainda é, para os clínicos, uma campo a ser explorado.

E após ler Zolty (2001) acalmei-me e passei a acreditar que realmente não precisa ter pressa em passar o analisante ao divã. Entrevistas pré-liminares podem levar dias, semanas, meses ou até mesmo…anos! Esta autora afirma que foi J-D. Nasio que propôs a tese da foraclusão localizada para explicar as manifestações ditas “psicóticas” – delírios ou alucinações – que ocorrem em pacientes que não apresentam, obrigatoriamente, uma patologia de psicose (e pergunto a vocês – seria a psicose realmente uma patologia????) e, inversamente, para explicar comportamentos ditos “normais” em pacientes diagnosticados como psicóticos, como então fazemos????

Se foi Nasio, ou não, quem formulou essa tese chamada de foraclusão localizada, Beckouche (1994), define foraclusão como um buraco no simbólico; ela só pode ser verificada por seus efeitos. Estes buracos, só podem ser apreendidos de uma maneia pertinente na estrutura particular do dizer de um paciente psicótico.

a psicose se desencadeia num sujeito em condições eletivas ao encontro da falta do significante como tal, e pelo buraco que este abre no significado, segue-se o desenvolvimento separado de relação do significado e ao aparelho significante. (BECKOUCHE, 1994, p. 85)

Chemama e Vandermersch (2007) definem como foraclusão o funcionamento da linguagem e as categorias topológicas do real, simbólico e do imaginário que permitem especificar assim uma falha: o significante que foi rejeitado da ordem simbólica reaparece no real, de modo alucinatório, por exemplo. As perturbações que se seguem a isso, nos três registros do real, simbólico e do imaginário – R S I – dão às psicoses atuais suas diferentes configurações. O efeito radical da foraclusão sobre a estrutura deve-se não apenas à mudança de lugar do significante, mas igualmente ao estatuto primordial daquele que é excluído: o pai como simbólico ou significante do Nome-do-Pai, cujo significado correlativo é o da castração. É por isso que, em determinadas condições, o sujeito psicótico é confrontado com uma castração não mais simbólica, mas real.

Enfim, voltamos a Nasio (1989) em seu livro Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise, onde ele já nos deixava uma dica para mais tarde, formulada em seu e outro livro Os grandes casos de psicose (2001).

Escrevia, ainda, Nasio (1989):

O conceito de foraclusão é construção teórica que tenta explicar o mecanismo psíquico na origem da psicose. Além disso, alguns distúrbios episódicos – tais como uma alucinação, um delírio agudo, uma atuação, ou mesmo doenças psicossomáticas – poderiam também ser esclarecidos a partir da hipótese de foraclusão. Essas manifestações clínicas – quer sejam duradouras ou transitórias – seriam todas ocasionadas por uma desordem na simbolização da experiência da castração. Veremos que a foraclusão é, com efeito, o nome que a psicanálise dá à falta de inscrição, no inconsciente, da experiência normativa da castração, experiência crucial que, na medida em que é simbolizada, permite à criança assumir seu próprio sexo e, desse modo, tornar-se capaz de reconhecer seus limites. À parte as manifestações clínicas e sintomáticas próprias da psicose, essa falta da simbolização da castração se traduz, particularmente, por uma incerteza do paciente psicótico com respeito a sua identidade sexual e por uma perda do sentido da realidade. (p.149).

nasio blog psicanaliseBem, talvez ao que, em 1989, Nasio (foto) tenha denominado de distúrbios episódicos, em 2001, ele as nomeia como foraclusão localizada e apresenta um determinado caso clínico. E nos convoca a pensar: quem então sustentaria uma análise? Um simples neurótico??? Ou não tão simples assim, um neurótico – psicótico ou um psicótico – neurótico???? Dúvidas e mais dúvidas…

Porém, pergunto a vocês, analistas em sua prática clínica diária, não habitam os consultórios de vocês algumas histéricas que fazem ou já fizeram suas respectivas atuações??? E os obsessivos com seus delírios agudos, muitas vezes cheios de certezas e teses tão bem construídas, elaboradas e defendidas? E as doenças psicossomáticas??? Pacientes encaminhadas por dermatologistas, pois já se investigou o que a medicina pode dizer e afirmar… mas, a psoríase persiste em estourar.

Nasio (2001) conceitua foraclusão localizada como nome ao mecanismo responsável por estados psicóticos e por fenômenos pontuais e transitórios, de caráter psicótico, que ocorrem em sujeitos neuróticos tal como sua paciente Mariane, cujo caso clínico ele apresenta no final do seu livro Os grandes casos de psicose.

Trata-se do aparecimento de momentos alucinatórios, de convicções delirantes pontuais, de passagens ao ato fulgurantes, de eclosões psicossomáticas marcantes, ou até de pesadelos tão intensamente vividos que o sujeito que lhe serve de palco não consegue voltar a dormir.

Quanto aos pesadelos, Harari (2002) acrescentou um aspecto na seguinte questão: Hiância do despertar entre duas séries de representações igualmente imaginárias, a saber, o sonho e a vigília. (p.289). O despertar é um significante ao qual muitos analisantes fazem referência no curso de uma análise proveitosa: dizem que notados com mais despertos, literalmente. Por isso, entre essas duas posições imaginárias – o sonho e a vigília – se encontra o despertar.

Lacan ensinou que, quando dormimos, é quando estamos despertos, porque assim nos abrimos à égide dos sonhos (dos pesadelos). Por outro lado, e de modo sumamente reiterado, quando permanecemos com os olhos abertos, mais nos entregamos ao dormir. Estar em vigília, por consequência, não implica estar desperto. O despertar, em síntese, denota um instante de encontro com o Real, nem um pouco dependente das noções biológicas do dormir, do repouso ou da vigília. De modo nodular, aponta para instantes acontecidos na sessão analítica. Pois bem, o despertar não tem porque denotar uma espécie de iluminação, na qual o analisante seria possuído pelo êxtase da ordem mítica, ou algo semelhante. Não, porque pode bem corresponder ao aludido aniquilamento.

A esses distúrbios, que desconcertam os analisantes e surpreendem o psicanalista, Nasio (2001) deu o nome de formações do objeto (a¹²), para contrastá-los com as formações do inconsciente. E ao invés de resumir a teoria da foraclusão localizada e suas manifestações clínicas, Nasio (2001) expõe diretamente um caso de análise e o mostra em ação. E agora, nesse tempo do texto, há como tecer articulações, tanto com Nasio (2001) e Harari (2002) para tentar esboçar conceitos, características e possíveis definições do que seria então o que se denomina foraclusão localizada.

Se Nasio (2001) assim define: Mariane: um exemplo clínico que mostra a necessidade do conceito de foraclusão localizada (p.221), Harari (2002) acrescenta uma tessitura semelhante, ao nos interrogar o enunciado lacaniano formulado por um não há, encontrando-se, como tal, relacionado com a ausência de relação sexual.

Pois bem, tal enunciado não é senão o nosso conhecido: A (barra) mulher. “A (barra) ” barra o artigo determinado – determinante. Se estivesse sem barrar, A mulher existiria como classe universal. Ao barrar o artigo, escreve, portanto, a inexistência de A (barra) mulher como classe universal. Obviamente existem, sim, as mulheres, uma por uma.

Dito de outro modo: não há A mulher, há as mulheres. Essa circunstância corresponde, como dissemos, à ausência de um significante no qual A mulher – sem barrar – pudesse chegar a reconhecer-se, porque a representa. Do exposto, deriva-se uma série de notas definitórias; entre elas, a noção atinente que o gozo feminino se aproxima do gozo mítico.

As mulheres, devido à falta de tal significante, estão como que desconcertadas, desorientadas, meio-loucas (entenda-se: meio, conotando não-todas). O que, como sabemos, não deixa de implicar uma espécie de elogio a respeito do inconsciente, sempre que – por essa mesma proximidade – não desencadeie delírios com fascinante e sedutora roupagem psi. Isso como é notório, pode terminar em diversas psicologias e assistencialismos, em função dos quais muitas mulheres pretendem construir um significante próprio, no qual pretendem se reconhecer.

A ausência irremediável de “A” (sem barra), ou seja, a ausência de uma classe universal para nomear a mulher, é também de índole foraclusiva.

No fórum do mês passado, em nossas discussões foi citado o caso Camille Claudel, e por conta disso, voltei, re-vi¹³ o filme por mais algumas vezes, e a todo momento questionava-me : seria mesmo uma mulher paranoica? Seria Camille uma exímia psicótica? Ou uma histérica em desespero, menosprezada por seu amor, e naquela década foi tratada como uma psicótica e morreu enferma² em um hospital psiquiátrico?

paranoia blogParalelo a Camille Claudel, pensava na tão contemporânea Sophie Calle, ambas não atuaram? Sophie também não faz em ato, ao publicar a carta de despedida de seu amante onde só a eles aquela carta pertencia? Por que fez questão Sophie Calle em marcar tão foraclusivamente assim a vida de um homem? Deixar a marca de uma mulher? Concordaremos com Soler (2005) quando esta escreveu que mulher que é mulher marca a vida de um homem e jamais deve ser desprezada por este.

Soler (2005) cita o caso Ysé, a personagem feminina da peça, Partilha do meio–dia, na qual sabemos que nem tudo era ficção para Claudel e que foi reescrita por ele três vezes, discorre sobre a impossibilidade do amor, que não é o amor impossível. Sua construção é, ao mesmo tempo, apurada e simbólica: três atos, três visões, três homens e uma mulher. Ysé é esposa e é mãe de dois meninos, mas anuncia: Sou o impossível. Afinal, que quer Ysé? Ela então respondeu:

Seria muito precipitado concluir, a partir de suas oscilações, que ela não sabe o quer, como é frequente dizerem das mulheres. Suas hesitações traduzem, antes, que ela não ousa querer – no sentido da vontade assumida – aquilo que deseja no sentido inconsciente, como Outro. Sem dúvida, ela não sabe o que é isso, exceto que se manifesta sob a forma de uma tentativa, ela não sabe o que é isso, exceto que se manifesta sob a forma de uma tentação, contra a qual ela recorre ao marido e a amores mais moderados. Não consegue evocá-los senão como o poder que barra tudo o que o Outro trouxe à luz, esse fascínio pelo abismo, ‘desumano e parente da morte’ (p.22.).

Assim, Ysé, com seu belo riso e toda sua malícia juvenil, faz-nos divisar um horizonte mais funesto, onde impera a aspiração mortal que rompe todo vínculo humano, que apaga os homens amados por ela e também os filhos – que a peça deixa na ausência, mas dos quais ela diz em várias ocasiões o quanto lhe são preciosos –, em nome de um anseio propriamente abissal, de uma vertigem do absoluto da qual o amor e a morte são apenas os nomes mais comuns, e para os quais o nome de gozo não seria inoportuno. Em Ysé, não é a traição que constitui a marca própria da mulher. É claro que ela trai, mas não um objeto por outro, um homem por outro; antes, trai todos os objetos que respondem à falta inscrita pela função fálica, em prol do abismo. Esse traço de aniquilação, quase sacrificial, é a marca própria que designa o limiar, a fronteira da parte não do todo fálico do não-todo, Outro absoluto.

Ysé, na sua década, é encenada como uma louca, sabemos que ela tinha marido e filhos – no Ato I, depois no começo do Ato II, esse marido viaja a negócios e Ysé o trai. Na peça, aparecem três homens, De Ciz, o marido obtuso, Mesa, o homem absoluto, que ela arranca de Deus e Almeric, que aparece no Ato III e a roubou de Mesa. Ysé trai por três vezes, e todos os três homens.

No Ato II, Ysé trai o marido obtuso que não compreende nada, com Mesa, o homem absoluto. Porém no Ato III, Ysé estará com Alemric, que a roubou de Mesa, e quem por sua vez, ela trairá, deixando – o na inércia da vida, ela volta, num derradeiro epitalâmico, para Mesa e a morte.

Soler (2005) tece a seguinte questão: Mais do que o simples apelo do amor, não se tratará, através dele, do apelo de algo mais radical, da tentação aniquiladora por excelência? (p.21). Por sua vez, Camille Claudel, na sua época, é tida como psicótica, paranoica, camisa de força, reclusa em hospital psiquiátrico.

Sophie Calle, em 2010, vira exposição – Cuide de você – e milhares de mulheres analisam uma única carta que só dizia respeito a ela mesma. Onde no final… se a tradução para nós ficou: Cuide de você (nome-título da exposição) , em inglês aparecia take care e para um leitor da língua inglesa, talvez soasse take-care²¹, como se nada de carinhoso tivesse nessa escrita, e sim, até um certo desprezo: do cuide-se

Sophie Calle, assim como Ysé, pelo menos isso nos é apresentado na carta de X, teve outros homens além de X. Em sua carta de despedida, apresentada na exposição Cuide de você, ele escreve para Sophie em um dos parágrafos:

Quando nos conhecemos, você impôs uma condição: não ser a ‘quarta’. Eu mantive o meu compromisso: há meses deixei de ver as ‘outras’, não achando obviamente um meio de vê-las, sem fazer de você uma delas. [….] Houve uma outra regra que impôs no início de nossa história: no dia em que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para você me ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa, injusta (já que você ainda vê B., R.,…) e compreensível (obviamente); com isso, jamais poderia me tornar seu amigo.

Será que tanto em Ysé, Camille Claudel e em Sophie Calle há algo de uma foraclusão localizada? Há um traço identificatório que une essas mulheres: as três desejaram marcar a vida de um homem. E por que via? O amor, feminino. Soler (2005) na perspectiva de esclarecer a fronteira entre feminilidade e a histeria, afirma ser o amor das mulheres ciumento e exclusivo.

O amor, segundo Soler (2005) é ciumento porque demanda o ser. Faz mais que demandá-lo, aliás; em seus momentos de plenitude recíproca, chega a produzir como que um pagamento temporário do efeito de falta–a–ser, um corretivo transitório da castração. Correlativamente, a perda do amor tem efeito depressivo no sujeito, que acredita perder uma parte de si mesmo e, como diziam algumas mulheres, não ser mais nada. Essa vertente da experiência comum, bastante evidente, é acentuada na histeria, mas não é apanágio dela. Está mais ou menos presente na maioria dos sujeitos, a despeito de algumas diferenças entre o homem e a mulher.

paranoia (2)Acrescenta Soler (2005) que, por outro lado, o amor feminino é ciumento porque se prende, e isso é o mais interessante às características de seu gozo. Ao contrário do gozo fálico, o gozo outro, suplementar, ultrapassa o sujeito. Para começar, por ser heterogêneo à estrutura descontínua dos fenômenos regulados pela linguagem, com a consequência de que o gozo não é identificatório. Ainda para Soler (2005) a mulher apresenta a necessidade de um outro recurso e os esforços para se identificar pelo amor. Em outras palavras, na impossibilidade de ser A mulher, resta ser uma mulher, ela toma emprestado o um do Outro, para se certificar de não ser apenas um sujeito qualquer – o que ela é, a partir do momento em que é um ser falante, sujeito ao falicismo – mas ser, além disso, identificada como uma mulher escolhida. Desta forma, torna-se compreensível porque as mulheres, histéricas ou não, mais que os homens, amem o amor.

Camille Claudel, a todo custo tenta se autoafirmar e gritar em praça pública ou nas exposições de: Rodin: eu sou Camille Claudel. Por sua vez, Sophie Calle grita, nos museus, revelando ao público o que até então só pertencia ao privado.

Mariane, o caso clínico exposto por Nasio, na adolescência havia vivido um momento psicótico, um episódio de foraclusão. Mas esse episódio pontual, não a impediu de ter sido casada, ter tido filhos, e aos 50 anos já era avó. Em determinado momento da sua vida, seguiu neuroticamente seu caminho, embora aquilo que foi vivido havia deixado um vestígio, e para o inconsciente o tempo não existe.

Harari (2002) pontua que encontramos também foraclusões no neurótico e, como Lacan nos deu a entender, também em cientistas, acadêmicos, pessoas públicas³ os quais, para construir sua disciplina, devem foracluir o sujeito dividido.

Ainda Harari (2002) assinala que Lacan ao falar – implicitamente – de seu entendimento de Joyce não se trata da foraclusão do Nome-do-Pai, mas de sua prescindência à condição de servir-se dele. Ou seja, que, prescindindo da função Nome-do-Pai, (se) possa chegar a nominar, a fazer (se) (um) nome. Não se refere ao Nome- do-Pai, nem ao Pai Nomeante (ou: Pai-do-Nome); tampouco denota o pai que diz não. Aponta simplesmente a quem, como Joyce – mas não apenas como Joyce – busca fazer-se um nome próprio. (Algo que também discutimos no fórum do mês de março – referindo-se ao próprio caso Joyce, e como um sujeito pode estruturar-se em sua paranoia, por um nome-próprio).

Poderíamos acrescentar, de acordo com o já trabalhado: o que se deveria obter, com os analisantes ao que não acede a Joyce, já que não foi analisante –, consiste não apenas em fazer-se o nome (próprio), senão voltar a reduzi-lo, depois, à categoria do nome comum. O nome-próprio, então, permite prescindir do Nome–do–Pai. Entretanto, isso comporta um risco: o de acreditar nisso, ou seja de ser.

O acreditar nisso, segundo Harari (2002) comporta construir uma identidade, de acordo com o termo psicológico: por outro lado, constitui uma das características de Joyce, em uma de suas formas de nominar.

Se há na paranoia algo que é capaz de sustentar o sujeito e o estruturá-lo em sua neurose, há também algo na neurose que pode foracluir pontualmente. O caso Mariane apresentado por Nasio (2001) se deu dessa forma: desencadeou-se então um episódio depressivo, a partir de convicção delirante; um fato surgiu no lugar de um dito. Um delírio apareceu no lugar de um pensamento que, em condições normais, a moça deveria ter concedido a respeito de um crime de infanticídio, mas que não lhe ocorreu. Um significante foi convocado, mas não se representou (foraclusão) e, em seu lugar, surgiu a formação delirante.

Foi a intensidade do impacto de um acontecimento trágico que revelou em Mariane sua impossibilidade de simbolizá-lo; foi justamente a força desse apelo que evidenciou sua incapacidade de responder. É essa impotência absoluta, essa não resposta radical, que Nasio denomina de foraclusão localizada. Uma representação não adveio, nem tampouco o afeto que a acompanhava; assim, a formação delirante organizou-se de maneira autônoma, heterogênea ao resto da personalidade, e Mariane, apesar de inteligente e sensata, pensou e disse, identificando – se com a mãe infanticida: “fui eu que matei a menina” (NASIO, 2001, p.223).

Esquematicamente, Nasio (2001) apresenta neste exemplo clínico o mecanismo de foraclusão da seguinte maneira: primeiro, observa em Mariane o retorno no real de um significante foracluído. O significante não surgido no simbólico reaparece, transformando, no real, sob a forma de uma certeza delirante: Sou a assassina dessa criança, sou culpada (p.223). A representação foracluída, em questão seria: minha mãe já matou dois filhos, pode me matar também (p.223). Foracluída significa que essa representação não adveio, foi abolida, porém continuou mais atuante do que nunca. E ressurgiu de maneira invertida: o eu sou morta transformou-se em eu mato.

Nasio (2001) afirma que o que faltou a Mariane quando ela ouviu a notícia do assassinato foi poder traduzir um significante à fantasia que a habitava – ser morta pela mãe (a analisante em questão havia tido uma mãe, que nunca havia feito o luto de seus dois bebês, mortos antes do nascimento da analisante (no caso: Mariane)). Foi justamente por não saber responder com palavras, imagens e emoções à violência que o infanticídio significava que Mariane mergulhou na confusão. Se, ao contrário, ela tivesse sentido indignação, e caso houvesse lembrado dos medos que sua própria mãe lhe inspirava, a jovem Mariane teria produzido um significante que a faria existir como sujeito. De fato, o sujeito é gerado no ato simbólico do dizer.

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Com essa passagem de Nasio (2001), passemos a Harari (2002) que vai além do primeiro Lacan e acrescenta que cada falante organiza as marcas do Outro de acordo com uma condição que, nessa ocasião, chama de particular. Não singular, porque, nesse caso, move-se dentro do geral, de bem que lhe articulando um toque, uma pincelada final, que é particular.

Assim, como podemos concluir, mesmo sabendo que há diversas questões nesse terreno tão duvidoso que habitamos ao sermos escolhidos a condição de analistas? O que então podemos em mal traçadas linhas tentar esboçar uma definição precisa, para o conceito de foraclusão localizada????? Se de localizada…não há nada que se possa localizar na Psicanálise????

Talvez, concordar com Nasio (2001) e chamar atenção para o adjetivo localizada. Que traz ele de essencial para a teoria e a clínica, pergunta o autor citado. E prossegue: Localizada quer dizer que o prejuízo do psiquismo de uma paciente como Mariane concernia apenas a uma única fantasia, animada pela constelação mãe, filha e, entre as duas, uma criança morta. Fora dessa fantasia, isto é, fora dessa realidade psíquica bem circunscrita, as outras realidades psíquicas que estruturavam o psiquismo de Mariane permaneciam intactas. Seu delírio de adolescente não passara de semidelírio, um delírio bem localizado, centrado na identificação infanticida.

Para Nasio (2001) essa abordagem de localização, isto é, da coexistência possível de uma realidade psíquica estruturada pela foraclusão com um conjunto de outras realidades estruturadas pelo recalcamento. Mariane não poderia ser rotulada de psicótica. Ela decerto viveu um episódio de delírio, mas não perdeu, em absoluto, o contato com a realidade externa.

E assim, ficamos com mais uma questão: será que os tão rotulados psicóticos perdem o contato sempre com a realidade externa? E os neuróticos… são sempre bons filhos? Enquadrados, certinhos, formatadinhos, cumprindo sempre todas as normas e regras sociais? E afinal, será que conseguiremos saber realmente como alguém se torna paranoico?

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Texto apresentado no Fórum As Psicoses do Espaço Moebius Psicanálise, Salvador, Ba, em 26/ 04/ 2011, e publicado pela Editora JusPodivm, no livro Paranoias, 2012. 
Clarissa Lago, uma das autoras do livro é Membro Inscrito do Espaço Moebius Psicanálise.

¹ O sintoma é ao mesmo tempo dor e alívio. A teoria do Gozo proposta por Lacan é uma construção complexa, que distingue três modos de gozar. 
A palavra Gozo deve separar-se da ideia de orgasmo; uma vez que para a psicanálise, Lacan designa pelo termo gozo, três estados característicos do gozar: 
O gozo fálico, o mais – gozar e o gozo do Outro. (Nasio, 1993). 

¹¹ Até dezembro de 2011 lecionava na Graduação do Curso de Psicologia da Universidade Salvador (UNIFACS). 

¹² Lacan considera ter construído e inventado o objeto a. Ele é um objeto que se reveste da característica de ser escrito com um símbolo, a letra “a”. Esse símbolo “a” não representa a primeira letra do alfabeto, 
mas a primeira letra da palavra “outro” [autre]. Na teoria lacaniana, existe o outro com “a” minúsculo e o Outro com “A” maiúsculo. Este, o Outro com maiúscula, é uma das imagens antropomórficas do poder 
de sobredeterminação da cadeia significante. Já o outro minúsculo, com que a letra a qualifica nosso objeto, designa nosso semelhante, o alter ego. (NASIO, 1999, p.92). 
Se formos a Kaufamann (1996) percebemos que o conceito do objeto a já estava presente desde a obra freudiana. Freud conduziu a questão do objeto na psicanálise à de um objeto perdido em jogo na repetição, 
e Lacan acrescentou a isso a questão do traço que inscreve a repetição. 

¹³ Propositalmente a palavra é escrita separada, ligada por um traço de união. A atividade de escrita em psicanálise também tem seu valor significante. 

² Entre aspas objetivando ressaltar as possíveis críticas a esse significante. 

²¹ A escrita da segunda palavra é diferente propositalmente, pois há uma primazia significante na formação do significado da frase. 

³ Veremos isto com mais detalhes no texto do caso clínico de Presidente Schreber. 

Referências Bibliográficas: 

CARTA “X”. Exposição Sophie Calle Cuide de Você. MAM: Salvador, 22 set. 2010 - 22 nov. 2010. 
FORACLUSÃO. In: BECKOUCHE, Fanny et all. Dicionário de Psicanálise: Freud e Lacan, 1. 
Salvador, BA: Álgama, 1994, p. 85. 
FORACLUSÃO. In: CHEMAMA, R. Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 79. 
FORACLUSÃO. In: CHEMAMA, R.; VANDERMERSCH, B. Dicionário de Psicanálise: São Leopoldo, RS: Unisinos, 2007, p. 156. 
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______. O conceito de objeto a. In: NASIO, J- D.Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p.87-117. 
______. As psicoses transitórias à luz do conceito de foraclusão localizada. In: NASIO, J- D. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.220-226. 
OBJETO. In: KAUFMANN,P., Dicionário Enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p.377-380. 
QUINET, Antônio. As 4+1 condições da análise. 10. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 
SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 
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Written by Clarissa Lago

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