memorias-de-um-doente-dos-nervos-daniel-paul-schreber-8577531260_300x300-PU6ebb1026_1Confesso que a história de um doente dos nervos realmente dá nos nervos estudá-lo. Escrever e apresentar o Caso Schreber é uma tarefa árdua, pois é um caso clínico denso, cheio de detalhes e nuances, ao passo que também é encantador, pelo fato de sabermos que é um relato autobiográfico (e isso encanta pela clareza com que os detalhes aparecem, e uma certa lógica que o paciente estabelecia em cada um dos seus delírios.)

É importante pontuar que, contrariamente a outros exemplos de Freud, o estudo sobre Schreber se realiza no testemunho de seus escritos. O próprio Daniel Paul Schreber escreve a sua autobiografia denominada Memórias de um Doente dos Nervos. Freud não vivenciou esse caso clinicamente, porém a metodologia em estudo foi rigorosamente a mesma: só as palavras do paciente contam. Checchinato (1988) afirmou que Freud não arriscou nenhuma interpretação que não surgisse do contraste delas na dialética viva do texto.

Outra observação importante é que esse trabalho de Freud é de 1911, exatamente três anos antes de O Homem dos Lobos¹. Em Schreber o mecanismo da paranoia, para Freud, permanece como um enigma. Algo que em O Homem dos Lobos se diferencia, pois Freud introduz a noção de verwerfung, chegando ao ponto de afirmar que uma verwerfung é algo diferente de um recalque.

Da história de vida de Daniel Paul Schreber, sabemos que ele era filho do Dr. Daniel Gotlieb Moritz Schreber, médico, ortopedista famoso, sobretudo na Saxônia. O pai de Schreber, Dr. Daniel, tornou-se célebre por dois motivos: primeiro porque foi o fundador da ginástica terapêutica na Alemanha. Editou um livro, Ginástica de quarto, que conheceu numerosas edições. E segundo, na Saxônia, fundaram-se numerosas Associações Schreber cujo objetivo era formar harmoniosamente a juventude, assegurar a colaboração da escola e da família elevando o nível de saúde dos jovens por meio da cultura física e do trabalho manual.

Acrescenta Freud (1996[1911]) que esses esforços do Dr. Daniel exerceram uma ação durável sobre o comportamento de seu filho Daniel Paul Schreber.

blog da psicanalise caso schreberEste pai de Daniel Paul Schreber, tão rígido, levou Santner (1997) a dedicar-lhe o segundo capítulo do seu livro A Alemanha de Schreber a esse pai que sabia demais. Um pai em excesso, afirmou Santner; a excessiva proximidade entre o pai como esse filho criava um ambiente em que, em suas palavras, a castração estava sempre no ar (p. 85).

Checchinato (1988) afirmou que essa observação é de grande valor clínico, e acrescentou pontuando que:

Na história de todo paranoico haverá sempre, como no caso de Schreber, a figura de um pai severo, esmagador, violento. No decorrer da vida, o reencontro com tal figura, como o trabalho estafante de Schreber ou sua responsabilidade de presidente, fará explodir a crise paranoica. As ‘humilhações’ e as ‘rejeições’ são sem dúvida deflagradores por excelência e, ao paciente como Schreber, não existe outra saída que partir para a criação de um mundo em que possa sobreviver, o mundo do delírio. (p.26)

Os esforços de Dr. Daniel exerceram uma ação durável sobre os seus contemporâneos. Ele nasceu em 1808 e morreu em 1861, com 53 anos. Não temos dados concretos para saber qual teria sido o impacto dessa morte sobre Schreber, porém Freud (1996[1911]) apontou com clareza que: Um pai como esse de maneira alguma seria inadequado para a transfiguração em Deus na lembrança afetuosa do filho de quem tão cedo havia sido separado pela morte (p. 60).

Sabemos que o Presidente Schreber, o Doutor em Direito Daniel Paul Schreber, por sua vez, não se tornou menos célebre que seu pai, ou até mesmo seu avô e bisavô, como veremos nas páginas que se seguem. Presidente Schreber fez valer o título familiar de escrever para a posteridade. Segundo Checcinato (1988), é o autor e o paciente de Freud mais citado.

Ao escrever seu trabalho em 1911, Freud desejava que Daniel Paul Schreber ainda pudesse viver e livre do mal que o acometeu. Porém, mal sabia Freud que Schreber, após perder a mãe e a esposa, nessa época encontrava-se no sanatório de Dozen, situado nas cercanias de Leipzig, aonde veio a falecer no dia 14 de abril de 1911, aos 60 anos de idade.

Infelizmente Presidente Schreber não conheceu Freud e nem teve contato com nenhum psicanalista, embora tivesse tido a intuição de que esse seria o seu caminho: […] talvez não se possa exigir do diretor de uma grande instituição na qual se encontra centenas de pacientes, que ele penetre profunda e detalhadamente na conformação mental de um único entre eles. (SCHREBER, 1984, p.59).

O caso Schreber, nos diz Lacan (2003) Freud não conheceu nada além desse texto. E é esse texto que traz em si tudo o que ele soube extrair de revelador nesse caso (p.219). Apontou ainda Lacan que Freud teve a coragem em se expor, sem se deixar seduzir pela escrita delirante de Schreber.

blog psicanalise paranoiaA liberdade de Freud se deu em introduzir o sujeito como tal, o que significava não avaliar o louco em termos de déficit de dissociação das funções, já que a simples leitura do texto mostra com evidências que não há nada de parecido nesse caso.

Melman (2008) no final do seu livro Como alguém se torna paranoico, na página 127, levanta a seguinte questão: Schreber: paranoico ou esquizofrênico? Confesso que antes desse tópico apresentado por Melman nunca havia lido o caso Schreber sob o prisma da esquizofrenia, e sim, como o caso de paranoia, daquelas brabas, que o sujeito perde o sono ao estudá-lo, e na verdade é uma dúvida que me acompanha ao estudar a paranoia: pensar o terreno limítrofe em que a mesma se situa.

Ao pensar o diagnóstico diferencial, mesmo sabendo que este só se coloca em psicanálise como a função da direção da análise: diagnóstico e análise (no sentido do processo analítico) (QUINET, 2005, p. 18) por diversas vezes me pego a pensar onde se encontra o sujeito paranoico, e o neurótico obsessivo. No texto anterior A Foraclusão Localizada levantei a questão limítrofe entre a paranoia e a histeria….vejam, já não estamos mais na neurose obsessiva, mas sim, ainda que seja uma neurose, histérica! E se tão taxativamente Camille Claudel é paranoica, não me atreveria a dizer o mesmo. Haja vista que no texto anterior, citei, outras mulheres, que paranoicas (ou não) por um amor…dão passagem ao ato. Seja em traições (como Ysé), seja em publicar cartas que só diziam respeito ao privado (como Sophie Calle).

Portanto, voltando a Schreber, caso clínico ao qual dedico o estudo em algumas madrugadas, não me atrevo a qualificá-lo como esquizofrênico. Penso ser um paranoico, inteligentíssimo, que carrega uma história de vida, familiar com restos, resquícios de marcas de quatro gerações. (seria ele a 4ª geração).

Quais seriam as crises de Schreber? A primeira ocorreu no outono de 1884 e ao fim de 1885 Schreber estava “completamente”¹¹ curado. Nesta época Schreber tinha 42 anos de idade, era presidente do Tribunal Regional de Chemnitiz e se candidatara às eleições parlamentares pelo Partido Nacional Liberal, na qual sofreu uma terrível derrota. O Dr. Flechsig, em cuja clínica Schreber se tratou, declarou que o paciente se curara de acesso grave de hipocondria. E Schreber completa: a primeira doença decorreu sem qualquer incidente relativo ao domínio sobrenatural (SCHREBER, 1984, p.58).

A segunda crise se deu em 1893, quando Schreber completara 52 anos, após o trabalho estafante e extraordinário que teve que executar ao ingressar em suas novas funções de Presidente da Corte de Apelação em Dresden. (SCHREBER, 1984).

Finalmente a terceira crise que o acompanhou à morte se deu a 27 de novembro de 1907, quando foi internado em Dözen.

Infelizmente não temos informações históricas precisas dos precedentes nem das circunstancias que envolveram a doença de Schreber. Tentarei levantar algumas hipóteses clínicas a partir de certos dados fornecidos pelo próprio Schreber (1984), por Freud (1996[1911]) e outros autores que também se debruçaram a estudar esse caso, tais como Checchinato (1988), Melman (2002; 2006; 2008), Mattos (2000) e Santner (1997), dentre outros.

Melman (2008) responde, assim, ao tópico Schreber: paranoico ou esquizofrênico?:

A esquizofrenia é muito diferente da paranoia pela seguinte razão: é que, para o esquizofrênico, há no Outro uma multiplicidade de lugares, uma multiplicidade de furos de onde isso lhe fala, a partir desse momento aí, essas vozes que lhe falam, a partir dessa multiplicidade de furos podem adquirir todos os sentidos. Há, por exemplo, algumas que lhe dizem injúrias ao tempo em que há outras que lhe dizem palavras de amor. Há algumas que o convidam a ser um homem e outras que o convidam a ser uma mulher; e quando a esquizofrenia evolui, as alucinações podem terminar por não ter nenhum sentido. (p.128)

Nesse contexto, Melman (2008) considera ser a paranoia uma tentativa de cura da esquizofrenia, porque ela isola um lugar Um de onde isso lhe fala e põe o próprio paranoico em um lugar Um. A partir desse momento, a multiplicidade de sentidos se organiza nessa unicidade monótona que é a do paranoico, o quer dizer que o paranoico encontra aí um modo de saída da esquizofrenia e é, efetivamente, o que acontece com Schreber: ele sai da esquizofrenia pela adoção de uma posição paranoica, e, a partir do momento em que ele a assume, se sente indiscutivelmente muito melhor.

Leio Melman (2008) como se a paranoia permitisse o sujeito se “estruturar” (entre aspas), algo análogo (porém não semelhante), quando cito Nasio (2001) descrevendo o caso de foraclusão localizada.

Seria Mariene uma foraclusão localizada? Ou seria Mariene uma paranoica que construiu um delírio para dar conta de uma sintomatologia histérica? O não conseguir cuidar da neta seria então, um re-atualizar memórias infantis e ressurgir de maneira invertida: o “eu sou morta”, transformou-se em “eu mato”?

psicanalise blog esquizofreniaO que diferencia Mariene de Schreber? Sim, em vários aspectos os sujeitos se diferenciam. Em Mariene, temos um episódio pontual; em Schreber temos tres episódios de doença e em 1907 Schreber cai enfermo até a sua morte acontecida em 14 de abril de 1911.

Além dessas divergências, cabe ressaltar, também, a inteligência de Schreber, o destaque ao poder que ele tem de escrever a sua história, história essa lida até os dias atuais, exatamente 100 anos após a sua morte. Ainda o estudamos, discutimos, perdemos os nossos sonos.

Schreber, aquele que dizem ser paranoico, escreve a sua história como se fosse uma forma de realizar o desejo familiar que se fazia presente, no bisavô, no avô e no pai, assim como aponta Mattos (2000) em seu texto Schreber: um corpo-mulher para um pai.

Jurista e professor de economia, o bisavô chamava-se Daniel Gottfried Schreber; advogado, o avô chamava-se Johann Gotthilf Daniel Schreber; médico ortopedista e pedagogo, o pai chamava-se Daniel Gottlob Moritz Schreber, e, juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden, o filho chamava-se Daniel Paul Schreber.

Mattos (2000), então pergunta: não lhes parece que falta algo? Sim, pois no patronímico do filho onde está o Gott (Deus, em alemão) inscrevendo e representando seu portador – como faz o bisavô, o avô e o pai – na linhagem familiar, o significante Gott na quarta geração foi suprimido. Coincidentemente, aponta Mattos (2000), o irmão mais velho de Schreber chama-se Daniel Gustav Schreber, também sem o Gott no patronímico, ele suicida-se aos 38 anos, advogado, solteiro, lago após ser nomeado ao cargo de Conselheiro do Tribunal.

Os ancestrais masculinos de Schreber publicaram obras sobre direito, economia, pedagogia e ciências naturais, via de regra escritas com os objetivos de elevar a moralidade dos povos e de conquistar o bem da humanidade. Segundo Mattos (2000) os livros de Daniel Gottfried Schreber (o bisavô) trazem por lema a frase Escrevemos para a posteridade¹².

Por sua vez, Daniel Gottlob Moritz Schreber (o pai) publicou cerca de vinte livros sobre ginástica, ortopedia, higiene e educação das crianças; afirma Mattos (2000) que tais livros compunham uma doutrina médica-pedagógica rígida e radicalmente moralizante, buscando alcançar o domínio completo sobre todos os aspectos da vida humana, desde os hábitos alimentares até a formação do adulto cidadão, como por exemplo: a postura ereta dos corpos das crianças; a retidão moral do espírito é conquistada pelo aprendizado precoce de formas de contenção emocional e de supressão radical dos ditos sentimentos imorais, sobretudo os relativos à sexualidade. Assim, Dr. Daniel Gottlob Moritz Schreber não tem dúvidas de que seu trabalho contribuiu consideravelmente para aperfeiçoar a sociedade e enaltecer a obra de Deus; além do mais, orgulhava-se de haver aplicado pessoalmente nos filhos os métodos educativos que elaborara, orgulhando-se dos excelentes resultados.

Mattos (2000) ponderou: se o bisavô escreveu para a posteridade e se prediz que seus descendentes fariam o mesmo, o pai acrescenta o …nos corpos – e então a posteridade está em cena (posteridade do real, logo ver-se-á o porquê, a letra cai do lema de Gottfried), responde pontualmente pelo avesso: o filho mais velho suicida-se e outro enlouquece (p.155).

Com efeito, a presidência irrevogável e vitalícia da Corte de Apelação de Dresden conclui, por uma face – a face fálica – a saga delirante dos Schreber. Os lemas “Escrevemos para a posteridade” (nas obras do bisavô) e “Escrevemos para a posteridade…nos corpos” (nas obras do pai) encontram-se nessa nomeação, a recepção simbólica longamente desejada. Isto significa que os Schreber – cristãos, brancos, burgueses, cultos, talentosos, famosos, “Gottfried”, “Gothilf”, “Gottlob” – gozam em Daniel Paul (agora Schreber vis-à-vis a realeza) a celebridade e a imortalidade (MATTOS, 2000, p.155).

Assim, segundo Mattos (2000), elevado a juiz-presidente por uma nomeação definitiva de rei (corpo Estado), ninguém melhor que Daniel Paul para sustentar e satisfazer plenamente a epopeia schreberiana.

Com apenas 51 anos, rico, casado, profissional bem sucedido, cioso de seus deveres para com a cidadania, a moral e os bons costumes, poliglota, esteta refinado, músico amador (excelente pianista), por que, afinal, Schreber toma uma via aparentemente inesperada? Inesperada para um leigo, porém, para um psicanalista, possível e quase escrito Schreber tomar essa via da loucura.

Ele é a 4ª geração¹³ – que tenta resgatar o que já estava escrito, tanto a posteridade, como no corpo, e literalmente escreve em sua história de vida a posteridade – que até hoje estamos a nos deparar com Schreber, bem como escreve em seu próprio corpo. Para dar passagens aos seus delírios, Schreber escreve no corpo, empresta o corpo, um corpo que a todo o momento traz dúvida ser ele: feminino? Masculino?

psicanalise esquizofrenia blogO delírio de Schreber se desdobra em duas partes: primeiro ele será transformado numa mulher e isso é ressentido como perseguição e injúria e, em sequência, esse mesmo tema se reveste de um caráter religioso, transformando-se duma perseguição numa megalomania mística. (CHECCHINATO, 1988).

Para Mattos (2000), inscritos e representados na linhagem pelo Gott – que bendiz seus portadores, conduzindo-os, por essa nominação, à presença de Deus – desejosos de celebridade e de imortalidade, os Schreber, do bisavô ao pai, gozam falicamente – Gottfried – Escrevemos para a posteridade, Gothilf: Sim escrevemos para a posteridade; e o Gottolb: Sim, escrevemos para posteridade…nos corpos. O pai de Schreber procura estender o gráfico fálico para o real. A partir dele, os corpos devem – em sua formação orgânica, física, mecânica e comportamental – expressar concretamente a escritura dos Schreber, transmutando-se nos objetos dessa escrituração, no resultado palpável do Nós, os Gott (Deuses) Schreber, escre/vemos.

A saga delirante de Schreber, desde pelo menos o lema dos escritos do bisavô está ancorada na suposição de existência de um Outro² – Outro que se as coisas forem vistas, é a posteridade, logo. A posteridade, ou, o que seria dizer o mesmo, no contexto do delírio. A Celebridade e a Imortalidade dos Schreber. Escrever para a posteridade pressupõe que esse Outro demande o escrever como um ato que restitui o que Lhe falta – precisamente, o escrever como um ato. Ora, o delírio dos Schreber não consiste apenas em supor a existência de um Outro ao qual falta algo é o delírio nosso de cada dia…, mas sim no imperativo categórico de que, escrevendo – e, em Gottlob, atuando a escritura nos corpos – responde pontual e literalmente à demanda desse Outro, restituindo-O, totalizando-O (assim, escriturar-se-ia a inexistência da relação sexual).

Deste modo, afirmou Mattos (2000) que:

[…] capturadas em uma escritura delirante, as intenções – e, em Gottlob, as ações – no sentido de elevar a moralidade dos povos, de conquistar o bem da humanidade, de aperfeiçoar a sociedade, de enaltecer a obra de Deus, confluem todas para a suturação da falta no Outro (o matema deste “projeto” é S (A (barrado)// S (A), lendo-se “Significante do Outro barrado substituído por Significante do Outro não barrado”. E então, suturando-se a falta no Outro – como expus, pela escrituração (em Gottlob, a escritura atuada – “tatuada” – no corpos) – enfim os Schreber e o Outro são o Mesmo: a ferocidade de neutralização do meio – dizer em Gottlob – sua escrituração cristã (protestante, severissimamente luterana), iluminista (rigorosamente kantiana: Sapere aude!; Ousai Saber!; pregava ele) e, no limite (ou para além do limite), prática (a formatação dos corpos) – incide violenta e diretamente no desejo (logo, na falta)²¹ do Outro, transmutando o desejo, via apagamento da falta (por exemplo, estrita contenção no que se refere à vida sexual”, “severa correção da mecânica dos corpos”, etc), em gozo do Outro. ( p. 157)

A epopeia Schrebiana, Gottfried (Bisavô), Gotthilf (Avô), e ele (Gottlob, pai) concretamente instituem-se, por efeito de estruturação suturante do Outro, no Gott – Schreiber, a saber, no Deus–Escritor.

No final, silenciadas as canetas e as presilhas de ferro e couro (utilizadas por Gottlob para assegurar uma postura adequada), os objetos-obra desses escrituradores são os corpos dos filhos ceifados de Gott e diuturnamente manipulados, seja a meio caminho, o corpo–morto de Daniel Gustav Schreber (suicídio, aos 38 anos), seja completando o percurso, o corpo–mulher de Daniel Paul Schreber (emasculação delirante, aos 51 anos).

A saga de Schreber encontra, pois, seu termo fálico (resposta no simbólico ao desejo do Outro) com a nomeação de Daniel Paul Schreber para o cargo vitalício de juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden, e sua resolução transfálica (resposta no real ao gozo do Outro) com o suicídio de Daniel Gustav e a psicose de Paul Hollenfurst (Paulo, Príncipe dos Infernos) – o trocadilho, que poucas vezes soa bem, mas que mesmo assim tem valor de interpretação – abre aqui, segundo Mattos (2000) uma banda de Moebius: a saga/a chaga dos Schreber…

Ainda Mattos (2000) nos afirmou que a saga/chaga delirante dos Schreber resulta então nesta pessoa que vai ser aniquilada por Deus, a saber, a epopeia louca dos Gott (fried – hilf – lob) – Schreber encontra seu limite expressivo nessa Luder (puta), nessa mulher, nesse corpo deixado largado. (p. 160)

Portanto, a escritura dos Gott-Schreber lega à posteridade um resto: em nossos termos, ao se buscar escriturar a relação sexual – em Gottolb, incre/vê-la …nos corpos – cai desse ato um objeto, uma pequena letra (objeto a) que, escolho/escólio da operação – erra no corpo de Daniel Paul e o empuxa ao mais – gozar de A Mulher – afinal, se para a Lacan (1993) uma mulher só encontra O homem na psicose, em Schreber, ocorre também dessa forma, porém o inverso…um homem só encontra A Mulher na psicose.

Para Melman (2006) o caso Schreber traz um fenômeno notável, em que ele está no parque do sanatório e vê vários sóis no céu, e vêm vozes de cada um desses sóis. Com isso, ressalta que há duas maneiras possíveis de estruturar uma psicose, afirma o autor:

Primeiramente, poderíamos falar algo muito simples: a psicose é o que produz quando, entre S1 e S2, não há mais sujeito barrado, que é causado pela queda do objeto a. Essa seria uma primeira maneira, mais simples, de cogitar a estrutura da psicose: entre S1 e S2 não tem mais sujeito que teria provado a queda do objeto a. (p. 141).

Porém, ainda Melman (2006), acrescenta que há uma outra maneira de abordar a estrutura da psicose, pontuando que ela é o fenômeno que se produz quando a sucessão de significantes, quando cadeia de significantes não está mais organizada por um significante sexual. Assim, essa cadeia de significantes não é mais vetorizada pelo limite que o Nome–do-Pai impõe.

É dessa cadeia significante não mais vetorizada, que Melman (2006) cita Schreber para exemplificar com os vários sóis no céu e as vozes em cada um dos sóis que Schreber via e escutava no sanatório. Nessa concepção, aponta que nesse psicótico a fala, nos casos graves, não pode mais se exercer a partir desse Real onde se mantinha para ele o sujeito, o seu, já que está organizado pela queda de um objeto e que está justamente ligado à lei colocada pelo Nome–do–Pai.

paranoia esquizofrenia blog psicanaliseSegundo Melman (2006) esse fenômeno dos sóis múltiplos que se produz em Schreber funcionam como alto-falantes e lhes fazem discursos, nos quais cada um fala de coisas diferentes. Haverá um modo de cura para esta situação angustiante – Schreber aterrorizado – que é o restabelecimento? Há o restabelecimento paranoico que consiste justamente na capacidade de juntar todos esses reais dispersos em um único Real, no isolamento de única potência, que de certo modo é causa da situação e potência à qual Schreber tenta responder se feminilizando.

Isto posto, Daniel Paul Hollenfurst Schreber terá sido, para Mattos (2000), e concordando com este autor, afirmo: um dos corpos da psicanálise, a saber, um corpo-mulher para Um Pai, e, ao seu estilo, padecendo do automatismo do puro significante…Se terá sido assim, Daniel Paul, transfere-nos a liberdade de sua a – provação: elevando à dignidade de Memórias, seu corpo evirado resta como que a materialização do delírio escritural – estrutural – de seus ancestrais, logo, um corpo para a posteridade, Príncipe dos Infernos, célebre, imortal.

Imortal a tal ponto, que estamos até os dias atuais, tentando discutir e desvendar um caso clínico de um homem morto há mais de 100 anos atrás. Prova viva que para nós, psicanalistas, o tempo cronológico não existe! E os mortos podem ser ressuscitados a qualquer momento.

Trabalho apresentado no Fórum As Psicoses do Espaço Moebius Psicanálise, em 24/05/2011, e publicado pela Editora JusPodivm, no livro Paranoias, 2012. 
Clarissa Lago, uma das autoras do livro é Membro Inscrito do Espaço Moebius Psicanálise.

¹ Caso Clínico apresentado adiante por Clarissa Lago.

¹¹ O completamente aparece entre aspas, pois para a psiquiatria daquela época, Schreber ao sair da primeira crise, estava curado, 
uma vez que os sintomas havia desaparecidos momentâneos.

¹² Evidentemente, o sujeito oculto desta sentença é “Nós”, os Schreber.

¹³ A 4ª geração chama atenção nesse caso clínico, uma vez que na literatura psicanalítica encontramos diversos autores que afirmam 
que uma psicose eclode na 3ª geração. Porém ao analisarmos com cuidado a história familiar de Presidente Schreber; 
seu pai Daniel Gottlob Moritz Schreber já nos deixa rastros para pensarmos uma paranoia. 

² Mantém -se o Outro com O maiúsculo o que nos reporta ao conceito do Grande Outro Lacaniano. 

²¹ Grifo meu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHECCHINATO, Durval. A paranoia do Dr. Schreber segundo Sigmund Freud. In: SOUZA FILHO, Aurélio de Andrade et al (coord). 
A clínica da psicose. 2.ed. Campinas, SP: Papirus, 1988, p. 20-35. 
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia Paranoides). 
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996(1911). Vol. XXI, p. 21-89.
LACAN, J. Apresentação das memórias de um doente dos nervos. In: Lacan. J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 219 - 223.
LACAN, J. O seminário: livro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
LACAN, J. Televisão: Jorge Zahar, 1993.  
QUINET, A. As funções das entrevistas preliminares. In: As 4 + 1 condições da análise. – 10 ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.13-34.
MATTOS, J. Schreber: um corpo-mulher para um pai. In: O corpo da psicanálise. Publicação da Escola Letra Freudiana. 
Ano XIX, n. 27. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 153-162.
MELMAN C. Como alguém se torna paranoico: de Schreber a nossos dias. Porto Alegre: CMC, 2008. 
MELMAN, C. Retorno a Schreber. Porto Alegre: CMC, 2006.
MELMAN, C. Quarta questão clínica: a psicose. In:______. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. 
Porto Alegre: CMC, 2002, p. 141. - 145.
NASIO, J-D. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. 
SANTNER, Eric L. O pai que sabia demais. In:______. A Alemanha de Schreber: uma história secreta da modernidade. 
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 81 -123. 
SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. São Paulo: Paz e Terra, 1984. 

Written by Clarissa Lago

2 Comments

sthefany

ola gostaria de saber mais sobre cada fase da doença de Schreber …

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