Freud e Lacan estão vivos! Escrever é tão difícil… Por que será que escrevemos? Não há como escarpar do que Lacan (1973) proferiu: “Há um outro efeito de linguagem, que é a escrita.” (p.52). Lacan não fala isso “do nada”, é pontual; neste seminário, onde em todo momento escreve sobre o amor, é mais preciso ainda na aula de 16 de outubro de 1973 – O amor e o significante.

Clarissa Lago e Cyria CoentroFoi falando de amor que o Blog da Psicanálise, junto com Cyria Coentro, essa baiana, assim como ela nos disse, tem em seu nome uma mistura de guerra (Cyria) e tempero (Coentro), comemorou o Dia Nacional do Teatro: 19 de setembro.

Tarde de sábado em Salvador–Bahia, Rio Vermelho, um dos bairros que mais amo na cidade e onde tudo acontece. A assessoria de comunicação do blog já havia entrado em contato comigo com uma semana de antecedência dizendo-me: “Sábado tem trabalho, você e VM (Valdiky Moura) vão fazer a matéria sobre LOVE, entrevista com Cyria à tarde no Teatro Sesi, depois vão assistir ao espetáculo e escrever a matéria.”

Ok, sábado estava na porta do Sesi, fui a primeira a chegar, em seguida VM, minutos depois chegou uma “menina” segurando o cabide com a roupa do espetáculo: era Cyria.

O Sesi estava com uma festa infantil no pátio, VM queria gravar a entrevista e pegar o marzão, o pôr do sol do Rio Vermelho…mas não havia como! A festa da criançada estava muito animada, com o som nas alturas!

Mas os orixás conspiram ao nosso favor! Saravá! Se iríamos falar de amor,..um assunto tão delicado, precisava de um espaço delicado, reservado e sagrado quanto o amor nos permite ser e viver! Então, nos servimos do próprio teatro!!!!

Cyria alto astral junto com VM vendo espaços onde havia melhor iluminação… ela então nos sugeriu o palco…e assim foi: uma conversa leve, descontraída, com gargalhadas!!!!

Pergunto a Cyria como nasce esse projeto, então me responde que inicialmente havia pensado em algo como “Palavras alheias”, até que, quando convidou Jackson Costa para dirigi-la e ele se engajou no projeto, um dia ele viu uma foto com a palavra Love.

Ela gostava de colecionar poesias, ele encontrou a foto, assim nasce o espetáculo Love, com todos os seus sentidos, sons, cores, sabores, alegrias, dores, lágrimas… AMOR!

Sem nunca ter lido nada de Lacan, assim garante Cyria, sem nunca ter feito uma sessão de análise sequer, Cyria Coentro e Jackson Costa, mais uma vez confirmam o que Freud (1996[1914]) já alertou desde os primórdio dos seus escritos: poetas, dramaturgos, cineastas, roteiristas, atores, diretores, músicos, artistas, todos nos ensinam e antecipam o trabalho do psicanalista.

A arte nos ensina, assinalou Freud (2010 [1930]), é uma satisfação substitutiva que funciona como um paliativo diante do sofrimento, das decepções, das impossibilidades da vida. A arte é uma ilusão, em contraste com a realidade, mas nem por isso se revela menos eficaz psiquicamente, graças ao poder da fantasia.

Foto: Leonardo Pastor

Foto: Leonardo Pastor

Então se permitam!!! LOVE é um dos monólogos mais lindos que já escutei e vi! Mesmo sem saber, Cyria e Jackson levaram a psicanálise para o palco! Freud e Lacan vivos em todo o espetáculo!!!

O amor é assunto do maior interesse de qualquer psicanalista praticante da psicanálise, uma vez que o amor é a mola propulsora de todo o trabalho analítico. Assunto este que perpassa toda a obra de Freud, bem como a de Lacan.

Psicanalista praticante da psicanálise – gosto sempre de pontuar esse praticante, pois há psicanalistas teóricos que não atuam na clínica –, o praticante sabe o quanto é delicado esse terreno do amor, transferência, manejo do amor de transferência.

Freud (2010[1914]) em Introdução ao Narcisismo II escreve uma das frases pontuais, que nos remete a pensar, repensar, estudar infinitas vezes: “Um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas afinal é preciso começar a amar, para não adoecer,” (p.29). Tenho lido e visto, seja nas redes sociais ou até mesmo alguns psicanalistas trabalhando com essa frase, mas de uma forma como se essa passagem de Freud parasse por aí, entretanto, NÃO!!! Nesse mesmo parágrafo, Freud (2010[1914]) continua escrevendo sobre o amor e sua sutil delicadeza e dor: “(…) e é inevitável adoecer, quando devido à frustração não se pode amar.” (p.29).

Freud trabalha com o amor em toda a sua obra, não é do amor romântico que ele fala, mas, sim, de um amor de transferência – existente com as próprias questões do sujeito que fala, vive e muito mais. Portanto, quem atua na clínica precisa sempre estar advertido para localizar em que lugar de transferência o analisante situa o analista – tendo sempre isto a ver com as questões do próprio analisante; mas cabe ao analista saber manejar.

Portanto, amor? É aquilo onde muitas vezes faltam palavras… aquilo que sangra… dói… onde pulsão de vida e pulsão de morte caminham lado a lado com todas as suas vicissitudes. É exatamente disso que a peça LOVE trata!

Foto: Débora Setenta

Foto: Débora Setenta

No palco temos uma Cyria em diversas Cyrias… que prende pelo texto, por sua presença marcante, expressões corporais que falam. Se pego Gillibert (1996) e começo a comparar o que este esclarece em seu texto Psicanálise & Teatro com a peça LOVE, encontro todos os pontos que o autor aponta: pulsão, afeto e representação; a figurabilidade como exibição e encenação autônoma e autorreferenciada; associação das ideias e a articulação das cenas; ficção e o falso, imaginação fantasística e a ilusão, as máquinas narcísicas; os personagens e a pluralidade psíquica; transferência e transcendência no teatro; do ato ao pensamento e do pensamento ao ato; a economia da morte; as grandes sintaxes teatrais: o sonho, o jogo; a sublimação e o sublime ou o belo; o si mesmo separado da arte; a dramatização!

O texto tem vida! Não são simples poesias ou poemas declamados, há sujeitos no palco, ainda que seja um monólogo. Vozes femininas e masculinas se misturam comprovando de fato que em psicanálise não estamos falando de gênero, mas sim: sujeitos que amam e se permitem viver…

Foto: Leonardo Pastor

Foto: Leonardo Pastor

Ainda que a psicanálise não remeta a gênero, sabemos que ela invoca e trabalha com as posições que o sujeito ocupa na dinâmica dos sexos. Em LOVE isso está mais do que presente. Fui ao ano de 2010, quando li Paul Claudel, em sua peça Partilha do meio-dia, na qual sabemos que nem tudo era ficção para o autor, sabe-se que esta peça foi reescrita três vezes. Nesta, ele discorre sobre a impossibilidade do amor, que não é o amor impossível. Sua construção é ao mesmo tempo apurada e simbólica: três atos, três visões, três homens e uma mulher. Com a ajuda de Soler (2005) trabalhei com essa peça me servindo da personagem Ysé para discorrer em meu livro sobre um conceito Nasiano que admiro e chama atenção, a questão da Foraclusão Localizada, o leitor interessado nesse conceito o encontra com mais detalhes em um post específico sobre esse tema, aqui no blog.

Esse conceito de Nasio chama atenção justamente por isso; porque o autor esclarece em diversos aspectos que a normalidade passa longe de qualquer sujeito e que episódios pontuais de “surtos” psicóticos um neurótico pode ter.

Por isso me servi de Paul Claudel, ele quem bem desenhou Ysé, aquela mulher que amou muito, teve muitos amores, viveu intensamente, mas se declarou: “Sou impossível”. E essa mulher com seu belo sorriso e toda malícia juvenil, dividiu um horizonte mais funesto, onde imperou a aspiração mortal que rompeu todo o vínculo humano, que apagou os homens amados. Porém ela nos diz em várias ocasiões o quanto lhe foram preciosos – em nome de um anseio propriamente abissal, de uma vertigem do absoluto da qual amor e morte são apenas nomes comuns, e para os quais o nome de gozo não seria inoportuno.

Escrevi em 2012, no livro Paranoias, neste capitulo citado – Foraclusão Localizada – que o amor feminino, segundo Soler (2005), é ciumento porque demanda o ser, bem como exclusivo. Eis porque amar, para alguns, muitas vezes é uma verdadeira devastação.

Foto: Divulgação

Foto: Divulgação

Mas Cyria é sabia! Na entrevista ela deixa claro que sempre amou demais! Casou-se sete vezes (um dia chego lá!…). Quando pergunto sobre esse amor: a/mor/te – amor-morte-vida. Ela, muito tranquila, responde: “A vida é impermanente; o amor também é impermanente… então até que ponto ele é factual, é um pacto para sempre?”

É verdade, já escrevi também sobre isso, amar é capacidade de DAR, de dar um DOM – que é sempre do sujeito – esclareço isso no post: O homem – Uma mulher: Desejo e a/morte.

O amor? Não está no Outro, mas sim, na capacidade que cada sujeito possui em lidar consigo mesmo e com as suas próprias questões e relações. Claro que estudamos sobre amor, tentamos decifrar um (in)decifrável, mas é puro gozo! Gozo Um, Gozo Outro….Gozo!

Platão, em O Banquete, convoca tudo e todos para tentar “explicar” o amor… mas…consegue???… Não sei! Cada um daqueles filósofos tentam esclarecer da sua maneira, defendendo a sua perspectiva…. quando tudo já parecia “prontinho”, Alcebíades chega bêbado…desbancando todo mundo…(risos). A juventude de Alcibíades é contagiante e sua embriaguez nos coloca para pensar!

Assim como Alcibíades, Cyria faz em sua peça! Vibrante, forte, diversa… O espectador tem a possibilidade de ver em cena uma atriz divina no palco, irreconhecível, como antes nunca vista. Cyria é uma atriz completa; passeia entre cinema, teatro e televisão; mas é in LOVE onde a encontramos plena! Essa mulher absoluta! Com os “toques” do ser impossível.

Os aforismos Lacanianos presentes em seus diversos seminários, tais como no Seminário Livro 8; “Amar é dar o que não se tem a alguém que não o é”, todo dedicado a A transferência, o autor de 1960–1961 se empenha em trabalhar com esse tema do amor, começa o seu seminário nos fazendo voltar a ler Platão.

Mas esse tema, assim como a psicanálise insiste e persiste, em 1972 Lacan, cada vez mais complexo e histérico como só ele podia ser, profere o “…ou pior” – Seminário Livro 19 – e na aula VI lança algo mais complexo, e diz: “Peço-te que recuses o que te ofereço, porque não é isso.” (p.79).

Isso só? Não basta! No Seminário Livro 19 ele diz que o que se demanda não é isso. Então seguimos com o Livro 20, um seminário que fala especificamente sobre o amor, em 1973, ele nos disse:

Nós dois somos um só. Todo mundo sabe, com certeza, que jamais aconteceu entre dois que eles sejam só um, mas, enfim, nós dois somos um só. É daí que parte a ideia do amor. É verdadeiramente a maneira mais grosseira de dar à relação sexual, a esse termo que manisfestamente escapa, o seu significado. (p.52-53).

Essa escrita tão complicada, na peça Love é tão simples: Cyria se serve dos poemas de Artur da Távola, Tati Bernardes e outros para exemplificar o fragmento acima! Porque às vezes dar… só por dar… é bom pra cacete! Mas… nem sempre! Porque também às vezes você pode ter três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento e dois amantes, até marido se pode ter… mas mesmo assim, não tem um namorado! E como se isso não bastasse… também escutamos, que muitas vezes existe a dificuldade de escutar e admitir, porque sempre nos achamos “cults”, diferentes, mas… ”todos os casais? São iguais!”.

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Assistam à peça Love! Tomara que vocês saiam como Alcebíades… embriagados… porém de amor….um amor para além do seu, do meu, do nosso, um amor que o próprio Lacan (1973) convocou a pensar:

No amor, o que se visa, é ao sujeito, ao sujeito como tal, enquanto suposto a uma frase articulada, a algo que se ordena ou pode se ordenar por uma vida inteira.

Um sujeito, como tal, não tem grande coisa a fazer com o gozo. Mas, por outro lado, seu signo é suscetível de provocar o desejo. Aí está a mola do amor. O encaminhamento que tentaremos continuar das próximas vezes lhes mostrará onde se reencontram o amor e o gozo sexual. (p.56)

E então vocês desejam saber aonde se reencontram o amor e o gozo sexual? Já está mais que na hora de correrem para o Teatro Sesi (Rio Vermelho) e assistirem LOVE, uma peça, assim como VM afirmou no sábado ao sairmos do espetáculo e publicou em seu facebook; “Uma peça para assistir sozinho ou acompanhado. O que vale mesmo é assistir LOVE”!!!!

Parabéns, Cyria, por tanto talento! Parabéns, Jackson Costa, pela direção primorosa! Parabéns, Elisa Lucinda, parabéns a todos! E, claro, a Socorrinho, Socorro de Maria meu parabéns e um abraçaço todo especial, pois ela nos presenteou com esse encontro desse sábado maravilhoso, encontro esse em que aprendi tanto…

Cyria Coentro Jackson Costa Elisa Lucinda Socorro de Maria

Ao final da entrevista já estava cometendo lapso de língua, ao invés de chamar Cyria… estava chamando Cyria de Syra! Eis que ela me conserta: “É Cyria, Clarissa!” e caímos na gargalhada. Isso é um excelente exemplo bastante coerente do porquê em psicanálise a primazia é do significante. Só quem comete o lapso, seja ele de língua, ou de escrita, é quem pode interpretar!

É o sujeito que fala em cadeia de significantes que consegue e pode dar sentido à sua voz. É na cadeia de significantes que há um significado.

Olhem que exemplo bacana, troco ao falar Cyria com Syra!

Enquanto Cyria caiu na gargalhada e dizia: “Menina, Cyra é baiana de acarajé! Eu sou Cyria!”. Em gargalhadas respondo: “Pois minha associação foi com Syra – Psicanalista! Uma das grandes psicanalistas que nós temos aqui na Bahia! Uma das “mães” da Psicanálise, uma senhora linda que tem muita história para contar! Uma senhora de uma inteligência rara e uma sensibilidade profunda.”

O significante é primazia para quem fala, escreve, lê, sonha… E também para aqueles que amam…. ASSISTAM LOVE!

cyria coentro blog psicanalise - foto divulgação
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Referências: 

FREUD, Sigmund. O Moisés de Michelangelo (1914). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996(1914). Vol. XIII, p. 217-241.

FREUD, Sigmund. Os Instintos e seus Destinos (1915). In: Obras completas, volume 12: Introdução ao Narcisismo: ensaios sobre a metapsicologia e outros textos (1914 – 1916)/ Sigmund Freud; tradução e notas de Paulo César de Souza – 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.51 – 81.

FREUD, Sigmund. O Mal – Estar na Civilização (1930). In: Obras completas, volume 18:O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. (1930-1936)/ Sigmund Freud; tradução e notas de Paulo César de Souza – 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.13 – 122.

GILLIBERT, J. Psicanálise & Teatro. In: KAUFNANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1996, p.734-744.

LACAN, Jacques. Seminário Livro 8: Transferência (1960-1961). – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed, 1992.

LACAN, Jacques. O Ato Psicanalítico (1967-1968). Recife: Centro de estudos Freudianos do Recife, 2001. Publicação para circulação interna.

LACAN, Jacques. Seminário Livro 18: de um discurso que não fosse semblante(1971). – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed, 2009.

LACAN, Jacques. Seminário Livro 19: ...ou pior. (1971-1972). – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed, 2009.

LACAN, Jacques. Seminário Livro 20: mais, ainda. (1972 – 1973) 3 ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.

LAGO, Clarissa. Um homem – Uma mulher: desejo e a/morte. In: Reunião Lacanoamericana de Psicanálise de Buenos Aires, 2013. Texto disponível neste link Um homem – Uma mulher: desejo e a/morte. .

LAGO, Clarissa. A Foraclusão Localizada. In: LAGO, Clarissa; MARQUES, Marisa. Paranoias. 1ª. ed. Salvador - Bahia: Editora JusPODIVM, 2012. v. 1. p .51-67.

PLATÃO, O Banquete. 2ª Ed – Bauru, SP: Edipro, 2007.

SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

Written by Clarissa Lago

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