A encenação do conto de Lygia Fagundes Telles.

dolly espetáculo conto lygia fagundes telles– Hi! Sou Dolly, quantos anos você tem? (…)

– Tenho vinte e dois – respondi.

Okay, darling, a minha idade. Meu pavor era ter que dividir a casa com uma velha. Vamos conversar, pode aparecer hoje? É meu dia livre, sou artista. Quatro horas, está bem?

– Um momento! – (…) Não sei se vai dar, Dolly, hoje tenho uma aula.

– Vai dar sim, anote o endereço. (Telles, 2009; p.22 e 23).

A pergunta que não quer calar é: essas duas se encontram? E como acontece um encontro entre duas mulheres tão diferentes? Assistam Dolly! No Teatro Gamboa Nova. Não basta apenas ler o conto de Lygia Fagundes Telles, bom mesmo é assistir essas mulheres vivas em cena, interpretadas por Alethea Novaes.

a-noite-escura-e-mais-eu-lygia-fagundes-tellesAo ler Lygia Fagundes Telles, em A Noite Escura e Mais Eu; especificamente em seu conto Dolly, fiquei super curiosa como essas mulheres estariam no palco. Sabemos que no conto existem três mulheres, essas duas mais uma terceira, entretanto, encabulava-me: como é que Alethea conseguirá fazer isso? Como que essa moça irá conseguir fazer essa passagem de personagens tão distintas? E como é que o espectador irá conseguir identificar isso?

Pois bem, fui escalada para mais uma leitura psicanalítica de uma peça que está em cartaz na Soterópolis! Viva!!! A Bahia que respira psicanálise também anda respirando cultura, teatro de ponta, teatro de qualidade. Ainda que seja em curta temporada, o casal Marcelo Flores (diretor) e Alethea Novaes (atriz) está dando show no Teatro Gamboa Nova.

Em curta temporada, Os Argonautas reapresentam o espetáculo Dolly; oito anos após sua temporada de estreia na Sala do Coro do Teatro Castro Alves. O espetáculo está sendo apresentado às sextas e sábados de 9 a 24 de outubro.

Em ocasião de reestreia, fui entrevistá-los e assistir ao espetáculo. “De escuta” fui capturada pela fala de Marcelo na porta do teatro. Era mais ou menos umas 17h, à tardinha, sol se pondo, enquanto esperávamos Alethea que estava por chegar, Valdiki Moura e Marcelo Flores conversavam, enquanto eu? Escutava! Psicanalista antes de “entrar em cena” não tem muito o que falar, ficamos é a escutar mesmo! É verdade, falamos pouco, somos econômicos… enfim…

marcador de livro dolly gamboa novaMas a fala de Marcelo, antes da entrevista propriamente dita, já me capturava, ao dizer que estava ali, naquele teatro, com sua cara e coragem, sem apoio de patrocínio nenhum. Pensei: gente!!! Esse cara faz acontecer!!! Continuava escutando, íamos entrando mais na antessala do teatro; de repente vejo uns marcadores de livros – lindos! Com toda a ficha técnica do espetáculo – uma das coisas mais lindas que já vi no teatro baiano; pois aqueles marcadores soavam com um duplo sentido. Não apenas em sua frente tinha uma foto que resgatava uma passagem do conto, bem como no verso, a ficha técnica do espetáculo também remetia a um livro! Afinal de contas, só usa marcadores de livros quem lê livro impresso, de papel. O conto Dolly é de um livro, o primeiro conto do livro de Lygia. O marcador serve também para marcar, no livro, o início e o fim do conto.

Pergunto a Marcelo quem foi o designer que havia feito aquilo, ele me responde com aquele jeito simples que é dele e ninguém tira, aquele jeito simples ao ponto que despachado: é Marcelo Flores!!! Foi aí que Marcelo me ganhou! Curto gente que sabe fazer, faz bem feito, mas não é arrogante, nem se acha “o todo-poderoso”. Então respondeu: “.é… é…fui eu mesmo que fiz, sabe como é, né? A gente tenta!”. Marcelo, vocês artistas tentam e conseguem!!!!

Bruno Ramos, Clarissa Lago, Alethea Novaes e Marcelo Flores.

Bruno Ramos, Clarissa Lago, Alethea Novaes e Marcelo Flores.

Então entrei na conversa também, minutos depois chegou Alethea com o produtor do espetáculo – tinha que ter um lado cômico – sempre! Caso não houvesse, não seria o blog da psicanálise “em cena”! (risos). Nem sabia, quem era o produtor do espetáculo, de repente, chega Bruno Ramos, um ex-aluno meu dos idos anos 2000 do curso de Relações Públicas. Ao nos reencontrarmos, caímos na gargalhada, porque em Salvador–Bahia é assim, todo mundo se conhece.

Fomos descendo, teatro abaixo, mais analítico – impossível – até chegarmos à coxia e termos como cenário para nossa entrevista a Baía de Todos os Santos! Putz! Fim de análise? Talvez (risos)… desça ao porão…mas chegue numa coxia de um teatro…que na varanda tenha uma baía…que não seja uma baía qualquer, mas sim, me sirvo das palavras do ator Carlos Betão quando nos encontramos e nos abraçamos após o Papo Sádico: “Somos abençoados por todos os Santos.”

Cenário perfeito para conversarmos sobre esse conto de Lygia Fagundes Telles que ganhou vida…

Pergunto a Alethea como pensou essa concepção do conto, o porquê da escolha desse conto tão específico e também como é estar em cena vivendo mulheres tão distintas.

Sim, observem como inicio esta escrita, com um dialogo entre duas mulheres com estruturas clínicas marcadamente diferentes. Uma neurótica obsessiva em todas as suas nuances, enquanto a outra? Histérica! Tão histérica que era atriz!

Fui pela cadeia sonora de significantes, Gillibert (1996) defende que o Grande Teatro da histeria é o teatro da Ideia – Ideia – Theia…EIA – conseguem então fazer com que a histeria e o teatro caminhem juntos, inclusive apontam dados históricos que antes da invenção da Psicanálise, esse caminhar junto já acontecia entre a histeria e o teatro. Contudo, o autor em questão alerta; não devemos confundi-los. “O teatro, pela encenação do ator e seus poderes de representação, não obedece à dialética do aparecer histérico. Só faz denunciá-la, tanto no melhor quanto no pior dos textos” (p.735). É isto que Alethea faz, denuncia o que há de melhor no texto de Lygia em cena.

2015 dolly teatro gamboa nova alethea novaesQuem entende de literatura sabe que o conto em seu normal é uma narrativa breve, com uma unidade de tempo determinado, número restrito de personagens. Ao contrário de novelas que se desdobram e em seu curso normal dão explicações, o conto é pontual, preciso, com ritmo próprio, uma respiração que é só dele, com vozes que pertencem só a ele! Tudo em um conto é muito rápido! Tanto que perguntei a Alethea como ela conseguiu imprimir em um monólogo a carga dramática precisa para Dolly ganhar vida.

E está no palco. Está marcado em cena: a narradora do conto, a mulher obsessiva e a mulher histérica.

O que diferencia essas mulheres? Na histeria o desejo insatisfeito proclama uma dor; porém, na neurose obsessiva a dor da mulher é camuflada com ardis e subterfúgios, mas não aplacada.

Enquanto na histeria temos uma mulher determinada ao ponto de marcar com a outra esse encontro, e é decidida! A neurótica obsessiva é sempre lenta… e diz isso, não só no texto do conto, como também em cena!

Tem algo interessante na histeria – e isso também é visto até no figurino da atriz que interpreta Dolly, “a histeria não se manifesta apenas como uma neurose, mas também, simplesmente, como uma maneira de colocar a problemática da feminilidade.” (André, 1998, p.114).

dolly alethea novaes os argonautasAndré (1998) avança com uma questão que concordo de forma plena, “a falta de uma identidade propriamente feminina deve ser encontrada por toda mulher” (p.114), a verdade é que todas as mulheres, não importa em qual das neuroses estejam, interrogam-se: 1) O que é ser uma mulher? 2) O que é ser uma mulher para um homem? 3) O que quer uma mulher? A diferença está na maneira como lidam e se estruturam diante dessas perguntas.

Ali onde a histérica se rebelaria desafiando inclusive o saber médico, a obsessiva, escrava, obedece.

Segundo Ribeiro (2011) tanto a histeria quanto a neurose obsessiva denotam uma posição do sujeito com relação à linguagem, ao recalcamento. Para esta autora, são dois tipos clínicos, duas formas do sujeito, enquanto ser falante, se localizar frente à linguagem e frente ao desejo que nela desliza.

Contudo, a histérica denuncia os semblantes, denuncia o pai impotente em dar à mulher uma significante que dê conta de seu gozo suplementar. Enquanto a mulher obsessiva é uma crente, aposta no pai, crê no pai e espera do homem sua salvação. –Torna-se válido pontuar nesta escrita que em psicanálise não estamos falando do pai da realidade que cotidianamente se pensa, mas sim, o pai ligado aos três registros: Real – Simbólico – Imaginário.

A histérica banca o homem para melhor denunciar sua falha, enquanto que a obsessiva, sabendo de sua falha, o sustenta, banca o homem ideal que ela, não sendo louca de todo, sabe que não existe. Dois tipos clínicos, dois destinos de mulher. (Ribeiro, 2011, p.134)¹

alethea novaes dolly teatro bahiaÉ importante deixar claro uma questão; duas faces da máscara feminina, uma encarna o desejo exibindo a falta; outra, o desejo é encarnado como significante falta. Ok, são estratégias de mulher no jogo da sedução, o que não se pode distinguir o que é somente da histérica ou da obsessiva, e nem se pode generalizar, pois da posição de objeto de desejo, as mulheres (assim como também os homens) só podem ser tomadas uma a uma.

O que podemos nessa peça saber é que uma das mulheres, em sua relação com o desejo, em suas vestimentas, em suas atitudes e nas posições que ocupa diante do sexo e da morte pode ser tomada pela histeria. Enquanto uma outra, obsessiva ao extremo; inclusive sendo marcante a sua relação da questão do sexo, substituído em curto-circuito pela questão da morte.

A mulher obsessiva joga com a morte, tenta trapaceá-la com os mil ardis do seu tipo clínico, porém, ao mesmo tempo a encarna, poço de angústia e de culpa, abismo da pulsão de morte. (Ribeiro, 2011, p.164)

Será justo que é essa mulher obsessiva quem na peça encontrará a morte, se servirá dela para exacerbar e declamar o seu “quê” de melancolia. Podemos ver Freud (1917) na peça em sua observação ao nos dizer que embora o Outro absoluto da neurose obsessiva seja a morte e que os pensamentos sobre sua própria morte e a dos outros ocupem a mente destes neuróticos, os obsessivos não se matam.

dolly de lygia fagundes telles no teatro gamboaCom cuidado avalio essa observação freudiana (1917), pois na clínica sabemos e encontramos mulheres que, embora não busquem conscientemente a morte, se deixam matar, quer por ato falho, quer se oferecendo ao Outro seja ele quem for, até mesmo o da ciência, que em seu desespero o procura para ser medicada.

Esta pontuação que na clínica escutamos e observamos, na peça está posta. As mulheres têm contato com a morte! Uma se serve dela, e pode gozar com ela, enquanto a outra se oferece. – Isto está em cena! É perfeitamente identificável no palco.

A terceira mulher em cena parece ter a junção dessas duas. Provando, deste modo, que em psicanálise a estrutura clínica seja um ponto inicial a ser localizado nas entrevistas preliminares, para uma possível condução de um percurso de uma análise, porém, jamais determinante. As vezes brinco em supervisão com meus supervisionandos: “Purinho, purinho? Ninguém é!” ao falarmos sobre as estruturas clínicas; sabemos hoje que para além disso, em um percurso de análise, ou da própria vida – tudo pode acontecer.

Parabéns, Alethea, por conseguir viver essas três mulheres, com histórias de vidas e destinos diferentes!

Parabéns, Marcelo, por de forma linda e humilde escancarar na entrevista que se aproximou dos escritos de Lygia Fagundes Telles por sua mulher! E assim, juntos, vocês trabalham… ela lhe apresentou aos escritos de Lygia, você topou aprender com ela e a apreendeu tão bem sendo capaz de dirigi-la.

O público que for assistir Dolly, sem problemas, pode ler o conto de Lygia, e verá na peça todos os detalhes descritos no conto, inclusive o letreiro de 1921 jogado ao chão.

A garrafa vazia do vinho ficará rolando pelo palco na hora e na forma devida, a penteadeira estará em seu devido lugar, as luvas, os sapatos, os cadernos, o telefone, as revistas de época, os jornais, até a boneca de porcelana está no cenário da peça. Mesmo estando em Salvador – Bahia – Brasil, ano 2015. Não se preocupem, o janelão de vidro do Teatro Gamboa Nova será fechado e vocês serão “transportados” para a São Paulo de 1920.

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Atriz e diretor foram fiéis a Lygia. Alethea, atriz querida, escrevo agora este parágrafo específico para você: se é seu desejo que Lygia lhe veja em cena, estarei na torcida para que Lygia lhe veja! Mas lembre-se: há que se desejar e há que se querer também! Porque às vezes a pergunta que Forbes (2008) nos faz logo no título do seu livro: “Você quer o que deseja”? torna-se uma das grandes “charadas” que nós humanos precisamos estar atentos e advertidos!

Com toda certeza, estou lhes enviando vibrações positivas para que vocês alcancem novos vôos, para além do Rio de Janeiro e da Bahia e que um dia, você possa estar no palco e ver em sua plateia uma senhorinha linda e fofa apreciando o seu conto sendo encenado de forma fiel tal como ela escreveu.

Marcelo, pode ousar! Pode e deve! Embora conhecesse seu trabalho como ator, adorei mais ainda conhecer o diretor.

Parabéns ao casal! Sucesso… e lembrem das nossas palavras proferidas em frente à Baía de Todos os Santos… Todos os Santos estavam nos escutando. Axé!

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¹ Negrito é grifo meu.

REFERÊNCIAS:

ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher? – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.

FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? 7ª ed – Rio de Janeiro: BestSeller, 2008.

FREUD, Sigmund. Estudos Sobre A Histeria (1893-1895). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. II..

FREUD, Sigmund. Fragmento da Análise de Um Caso de Histeria (1905[1901]). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. VII, p. 14-116.

FREUD, Sigmund. Sexualidade Feminina (1931). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. XXI, p. 231-251.

FREUD, Sigmund. Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (1933[1932]): Conferência XXXIII: Feminilidade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. XXII, p. 113 -134.

FREUD, Sigmund. El sentido de los síntomas (1917). Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1964. v XVII.

GILLIBERT,J. Psicanálise & Teatro. In: KAUFNANN Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,1996, p.734-744.

RIBEIRO, Maria Anita Carneiro. A Mulher Obsessiva Entre a Tragédia e o Humor. In: BERLINCK, Manoel Tosta (org). Obsessiva Neurose. – São Paulo: Escuta, 2005. Biblioteca de Psicopatologia Fundamental. p 399 – 404.

RIBEIRO, Maria Anita Carneiro. Um certo tipo de mulher. 2ª ed – Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

TELLES, Lygia Fagundes. Dolly. In: TELLES, Lygia Fagundes. A Noite Escura e Mais Eu. Contos. – São Paulo. Companhia das Letras, 2009. p 7 – 25.

Written by Clarissa Lago

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